Desde criança, Irene Fernandes Neves celebra a data da mesma maneira: ela e seus familiares se reúnem pontualmente às 11h do dia 25 para um almoço. No cardápio, nada das comidas típicas do Natal do Hemisfério Norte, onde agora é inverno. Neve, só no seu sobrenome. Entre os pratos servidos, está a indispensável combinação de arroz com feijão, acompanhada de frango caipira, lombo ao molho de limão e pernil. Para sobremesa, pão de ló recheado com doce de goiaba. Tudo preparado no fogão a lenha. Ou 'microlenha', como ela prefere chamar.
Nascida há 53 anos em um sítio de Paraibuna, no interior de São Paulo, Dona Irene conserva a tradição iniciada na década de 1930 por seus avós maternos em Passa Quatro, no sul de Minas Gerais. Ela diz que a mãe, falecida 20 anos atrás, fez questão de preservar o costume mesmo depois de se mudar com o marido para o município paulista. 'Quando eu era criança, a primeira coisa que minha mãe fazia com os filhos era montar a árvore. Ela cortava um galho e nele todos penduravam bolinhas de algodão e frutinhas vermelhas', conta. Aos nove anos, a pequena Irene fez seu primeiro prato para a festa de Natal: bolinho de chuva com bastante açúcar e canela. Até hoje, a receita é uma das que ela mais gosta de fazer - e de ensinar.
Embora viva na zona urbana de Paraibuna desde que se casou, há 19 anos, Dona Irene mantém o estilo de vida do campo. Na casa em que mora, o cheiro único do fogão a lenha, as prateleiras repletas de panelas de ferro e o pilão para socar café são algumas das lembranças da roça. É ali que ela e seus 15 irmãos transmitem aos membros mais jovens da família os costumes ensinados pela mãe. Esse mesmo local deverá receber cerca de 95 parentes - vindos sobretudo de São Paulo e de São José dos Campos - para as festas de fim de ano.
A anfitriã calcula que para este Natal serão necessários aproximadamente 15 quilos de lombo, dez fornadas de 'panetones caipiras', como o pão de ló com doce de goiaba foi apelidado, e 40 quilos de figo, cujo doce não pode faltar. Outras dezenas de quilos de batata-doce e de laranja também serão providenciadas para completar as sobremesas. O banquete é farto, mas 'feito com muita simplicidade', ressalta.
Todos os alimentos são produzidos nos sítios dos membros da família. Cada irmão contribui com um ingrediente, e durante todo o ano há uma articulação para que as frutas sejam colhidas na época certa e para que os animais estejam preparados até o Natal. Às vésperas do dia 25, os parentes se reúnem para começar a fazer os pratos, o que, segundo Dona Irene, é uma verdadeira confraternização.
Ela diz que a oportunidade de cozinhar juntos é um dos motivos pelos quais eles não abrem mão de conservar a tradição iniciada pelos avós. No dia da festa, a camisa xadrez sai do armário, já que a roupa típica da roça é quase uma obrigação. Depois do almoço, brindado com suco de limão-cravo ('Para ajudar na digestão'), a família brinca de amigo secreto e troca os presentes. Apesar disso, Papai Noel não tem vez no encontro. 'Nós vemos muito isso, mas não
damos muita pelota, não', comenta.
Todos os alimentos consumidos na festa são produzidos pela família. Cada irmão contribui com algo que ele próprio plantou e colheu para a ocasião |
A família aproveita o resto da tarde conversando e contando piadas, herança do bom humor mineiro, explica Dona Irene. Os momentos engraçados, porém, não são causados apenas pelas anedotas. Em tantos anos de festa, muitas situações inusitadas já aconteceram. Ela conta que tempos atrás os homens queimaram um pernil, pois colocaram a carne para esquentar ('Coisa de cinco minutos', observa) e foram beber uma limonada misturada a uma generosa dose de cachaça. Quando perceberam, o pernil já estava completamente torrado. 'Todo mundo falava que era esquecimento, mas não era. Foi a 'marvada' que deixou a carne queimar', diz, em meio a gargalhadas.
Como toda boa festa caipira, a trilha sonora fica por conta da moda de viola. No dia da celebração, cada parente leva seu instrumento e a cantoria segue até o fim da tarde. Bernardo Antunes das Neves, marido de Dona Irene, toca violão e sanfona e não dispensa um bom desafio. Espirituoso, ele até montou, de brincadeira, uma parceria musical com um colega da cidade: Pedro Estrada e Zé do Bento, um trocadilho com o nome da dupla Pedro Bento e Zé da Estrada.
Na casa da família Neves, o apego às tradições rurais está presente em cada detalhe, não importa a época do ano. Assim como os ovos consumidos têm de ser caipiras, o café é socado, torrado e moído por Dona Irene. Além disso, há mais de 15 anos o casal trabalha servindo pratos da roça em eventos empresariais e em feiras típicas. Nessas ocasiões, Dona Irene e Seu Bernardo cozinham no fogão a lenha e fazem demonstrações sobre o preparo da comida.
O fogão a lenha, aliás, é fundamental para Dona Irene, pois é o instrumento que dá a ela o prazer de cozinhar. Tempos atrás, o marido a presenteou com um forno de microondas, mas o aparelho nunca foi usado. 'Gosto mesmo é do meu microlenha', brinca. O fogão a faz lembrar da mãe e dos momentos que passou na roça. Para reviver as boas lembranças e recarregar as energias, sempre que possível ela visita os irmãos que moram na zona rural. 'Sítio é vida. Colocar a mão na terra é muito bom', comenta.
LOMBO AO MOLHO DE LIMÃO-CRAVO (Rendimento: 10 porções) Ingredientes
1 kg e ½ de lombo
2 colheres (sopa) de sal
½ colher (sopa) de orégano
5 dentes de alho de tamanho médio
4 limões-cravo de tamanho médio
Como fazer
Soque o alho com o sal e coloque-os em uma vasilha. Acrescente o orégano e o suco dos limões. Faça pequenas perfurações no lombo (para que o tempero penetre) e junte-o na vasilha regando a carne com o molho. Cubra o recipiente com papel alumínio e deixe descansar por quatro horas. Depois disso, coloque para assar. Em forno convencional pré-aquecido a 180°, deixe a carne por três horas. Passado esse período, retire o papel alumínio e deixe mais 20 minutos para dourar. No forno a lenha, o lombo deve ser colocado para assar por cinco horas. Mais 40 minutos são necessários para a carne dourar.
PANETONE CAIPIRA (Rendimento: 10 porções) Ingredientes para o pão de ló
4 ovos
2 xícaras (chá) de farinha de trigo
1 xícara (chá) de leite
2 colheres (sopa) de margarina
½ colher (sopa) de fermento em pó
Como fazer
Coloque todos os ingredientes em uma vasilha e misture com uma colher de pau. Despeje em uma forma retangular e leve para assar em forno convencional pré-aquecido a 180° por 20 minutos. Caso seja colocada no forno a lenha, a massa levará 35 minutos para ficar pronta.
Ingredientes para o recheio
2 kg de goiabas vermelhas limpas e sem o miolo
1 kg de açúcar
12 cravos
Como fazer
Pique a goiaba e leve ao fogo baixo junto com o açúcar e os cravos. Mexa até que a fruta derreta por completo. A mistura estará pronta quando começar e desgrudar do fundo da panela. Deixe esfriar e, quando o doce estiver em temperatura ambiente, recheie o pão de ló ainda quente.
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